Calligraphy of a Mute Body

 

An exhibition by Marta Calejo
Opens 21 October 2015, 1:30PM
@ UPTEC PINC Foyer

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Próteses de registo para mãos e pés

Caligrafia de um Corpo Mudo
Marta Calejo [2015]

“Ninguém nasce mulher: torna-se mulher. Nenhum destino biológico, psíquico, econômico define a forma que a fêmea humana assume no seio da sociedade; é o conjunto da civilização que elabora esse produto intermediário entre o macho e o castrado que qualificam de feminino. Somente a mediação de outrem pode constituir um indivíduo como um Outro.”

Simone de Beauvoiar, Segundo Sexo

“ (…) a sede da dominação não reside naquele que fala (pois é ele está conscrito), mas aquele que ouve e nada diz; não aquele que sabe e responde, mas aquele que pergunta e que é suposto não saber.”

Michel Foucault, História da Sexualidade

1. Deambulações conceptuais sobre o que foi feito

O projecto apresentado desenvolve-se segundo uma articulação de diferentes níveis de significação conceptual. É este um projecto comprometido com as questões de género no seio de uma sociedade, ainda muito marcada por um pensamento hegemónico de caris patriarcal. Para efeito instrumentalizou-se as ferramentas do design como as questões da caligrafia e neste contexto de pensamento-ação a caligrafria de um corpo é retomada no sentido do acto da escrita e no que ela têm de performativo.

O projecto resulta de uma prática experimental do registo gráfico que foi desenvolvido enquanto dormia, ou seja, foi produzido num certo estado de ausência da consciência dos gestos ou das ações que iam tomando lugar de ocorrência no espaço do registo. Um projecto onde se converte a performatividade do gesto de um corpo em registo gráfico, em registo cartográfico, sendo que para que essa conversão/ tradução se dê foi necessário criar umas próteses
de registo cartográfico dos movimentos de um corpo [Figura A]. Próteses essas que foram agregadas às extremidades dos membros superiores e inferiores por se adivinhar que são as zonas do corpo que mais se movem enquanto dormimos.

São estes um conjunto de registos gráficos que para além de refletirem o corpo na sua relação com o espaço que comporta a ação, eles nascem de uma vontade de pensar as questões de género dentro de uma prática artística – numa visão mais estreita – que encontra eco numa vontade de pensar criticamente a sociedade, numa acepção macro-estrutural e seus discursos latentes. Este conjunto de quatro desenhos caligráficos decorreram ao longo de quatro semanas, sendo que cada desenho/ registo cartográfico teve a duração de uma semana e a cada alteração de cor corresponde um novo dia.

Um projecto que se desenvolve na não-ação, na passividade de um corpo que dorme e que mesmo assim é motor de produção de conteúdo. É este um projecto que estéticamente explora as noções de presença em ausência, um jogo de aparições que são viabilizadas por processos de desaparição, aqui falamos em termos de presença (ou des-presença) da consciência ou tomada desta, no momento da ação, que neste contexto deve legitimamente ser lida como não-ação.

Um corpo de mulher que teve que se submeter aos constrangimentos do meio para que fosse possível registo e produção de imagem. No presente projecto investiga-se também uma certa invisibilidade, um corpo que está sem estar, ou por outra, um corpo que opera sua ação num momento onde a consciência de si e da consequência dos seus gestos não está presente. Como na ordem linguística ou na ‘performance art’ é este um desenho que se forja na metonimia dos gestos performativos do corpo, há uma substituição do arquétipo do registo gráfico e deste modo tenta-se ensaiar um recriar ou redefinir os modus de criação, onde a estreita relação entre cérebro (em plena consciência de si e dos órgãos que comanda), mão e gesto é tomada pelas extremidades de um corpo (mãos e pés) e um cérebro que no momento da ação se encontra adormecido, sendo que mal entra em funções de consciência – logo se torna/ faz presente – o registo acaba, para ser recomeçado outra vez, num outro dia, num outro momento, com uma nova cor, num processo que se vai mimetizando e auto-reproduzindo ao longo de todo o projecto, como está descrito no conjunto de dezasseis paneis com fotografias digitais que documentam todo o processo evolutivo do projecto.

Neste projecto o recurso à fotografia digital foi fundamental como forma de justificação e validação do processo performático em causa. Neste contexto, a imagem fotográfica autentifica, confirma e testemunha todo o projecto. As ferramentas digitais revelam-se neste contexto num instrumento crucial para que os registos cartográficos, aquando a sua exposição, ganhem força e uma dimensão retórica que de outro modo não teriam.

Encorpora-se a reflexão sobre a Metafísica da Presença, abordada pelo filósofo franco-argelino Jacques Derrida, onde este faz um incitamento à deslocação do conceito de ‘real’ em detrimento do ‘ficcional’, pois tal deslocamento levaria a uma subversão da hierarquia dentro do quadro simbólico que nos sustenta, forçando uma mudança no interior do deferido (Derrida; 1997). Aqui e agora neste método de registo e de performar o registo caligráfico tornamos ‘ausente’ para que se faça ‘presente’. Neste processo metodológico das transferências de uso no registo gráfico/ caligráfico há algo de taxionómico, como se pode ver nos paineis documentais apresentados; uma conduta metodológica que põe em evidência uma sistematização do que não é sistematizável, pois apesar do mimetismo e reprodução processual os gestos involuntários, não-calculados e variação aleatória do tempo de duração dos vários momentos de registo, pautam todo o processo.

É este um registo que se faz numa suposta imobilidade do corpo, numa inércia corporal, ou por outra, uma mobilidade de um corpo que não é consciente no momento em que realiza a ação. Um desenho que para ser realizado, o corpo teve de ser subjugado conscientemente às adversidades do meio de produção de registo cartográfico. O corpo é constrangido pela rigidez do meio que suporta o registo, um corpo que para produzir imagem teve de se ajustar à forma do meio em que foram produzidos os registos e isto leva-me a fazer um paralelismo com Peggy Phelan onde a propósito da ‘performance art’, numa concepção feminista estabelece uma oposição entre ‘corpo em prazer’ (no caso de corpos masculinos) e ‘corpo em sofrimento’ (como ela mesma diz, fazendo referência a um título de um livro de Elaine Scarry – no caso do corpo feminino). Tania Modleski resgatou a relação entre Derrida e Austin para argumentar que uma crítica feminista é simultaneamente performativa e utopista. Modleski vai mais longe, para dizer que a relação da mulher com o modo performativo da escrita e da fala é particularmente forte do ponto de vista simbólico e semiótico na medida em que à mulher não lhe é garantido o direito de fazer promessas linguísticas ou semânticas dentro do falocentrismo, uma vez que frequentemente ela é aquilo que é prometido. Num contexto sócio político dominado por um certo falocentrismo, falamos tanto no plano material como simbólico e recuperando uma expressão de Modeleski, será à luz da ordem do discurso dominante o corpo masculino um corpo falante e o da mulher um corpo mudo, ou que o quizeram mudo. Sendo por esta mesma razão que no plano simbólico cada vez que uma mulher escreve um texto, toma a palavra, ou pinta um quadro (por hipótese, muitas outras ações poderiam ser somadas a estas) ganha um novo folego na medida que se trata da reivindicação de um corpo mudo (ou que o quiseram mudo) para que se torne falante. Falamos de uma ação, que no caso dos corpos mudos ganham uma expressão diferente, pois quando ao traço-mimético enquanto ressonância de memória (Derrida; 1997. memória enquanto espóra) dentro do quadro semântico que nos sustenta do ponto de vista da codificação semiótica, é feita uma alteração, ou seja, um deslocamento a consequência será a da subversão que inegávelmente nos levará a uma inversão na hierarquia estabelecida. Note-se que há um corpo de mulher que é colocado a dormir no chão e que produz registo do auto da sua mudez. Estamos perante um projecto que usa a ironia como forma de subversão dos discursos dominantes. A ironia reside na acção de um corpo de mulher que se quiz neste processo metodológico duplamente mudo – pois trata-se de um corpo de mulher dormindo – e que por intermédio das próteses de registo cartográfico, criados para o efeito, ele resiste, mesmo aquando o seu estado de uma certa inconsciência, num plano o mais baixo possível – o chão – ele reclama esse espaço de expressão, sendo então o desenho e seus artefactos, as ferramentas escolhidas para a tradução desse embate, que neste caso é metonímico, é estético e é político (este último termo deve ser entendido/ lido enquanto modo de pensar e analisar uma cidadania crítica, ou seja, de reflectir a forma como nos vemos enquanto sociedade, enquanto pessoas e agentes culturais).

Este conjunto de registo e este modus de cartografar o gesto/ ação de um corpo, ou a imagem que a partir deles é gerada, tem ligação com a ideia de caligrafia, com a ideia de apontamento de um corpo que fala e escreve, reinventado metafóricamente deste modo um novo desejo (resgatado no campo da ação) e reclamando esse espaço de existência a nível de uma posição activa, rejeitando por isso a passividade a que tem vindo a ser sujeito e submetido. Será importante referir que as cores escolhidas para o registo (preto; vermelho; azul e verde) prendem-se precisamente com a ideia metafórica do apontamento manuscrito. Sendo que neste contexto, a escrita do ponto de vista semiótico interessa-nos enquanto gesto performativo que se reinventa e se forja num tomar a palavra, pensando a escrita como possibilidade performativa real porque também aqui e como já foi dito, será através dessa performatividade do corpo que se desafia a ordem e a hierarquia estabelecida e dentro da sua assumida posição utopista se clama um novo desejo; uma nova ordem discursiva.

Cartografar os movimentos de um corpo em processo de ausência é também um modo de estar sem estar, de aparecer em estado de desaparição. Falámos de uma presença em ausência do corpo da mulher como modo do reconhecimento da fissura existente nas representações de género. Estamos em condições de afirmar que a proposição de presença em ausência é radicalizada neste trabalho, pois há um corpo em presença, em estado visível (não recorrendo por isso a nenhum subterfúgio para ocultar o corpo como no caso de Festa em Untitle Dance) mas o que dele interessa enquanto órgão que nos guia no sentido da comunicação efetiva – que é o cérebro – está ausente porque se encontra adormecido e por isso aquilo que nos fornece é resultado dessa presença em ausência na sua forma mais pueril.

Referências Bibliográficas:

BEAUVOIR Simone (1949), Segundo Sexo, Difusão Europeia do Livro, São Paulo (?) DERRIDA Jacques (1997), Max no es un Don Nadie, in PERETTI, Cristina (ed.) (2003) FOUCAULT Michel (1998), História da Sexualidade I: A Vontade de Saber, Edições Graal, Rio de Janeiro
FOUCAULT Michel, (1970) A Ordem do Discurso – Aula Inaugural no Collége de France, Edições Loyola, São Paulo (1999)
PHELAN, Peggy, (2001), Artigo A ontologia da performance: representação sem reprodução, Revista de Comunicação e Linguagens, No 24, Lisboa Edições Cosmos
RING PETERSEN, Anne With BOGH, Mikkel; DAM CHRITENSEN, Hans; NOR- GAARD LARSEN, Peter (2010), Contemporary Painting in Context, Museum Tusculanum Press, University of Copenhagen